Sobre estados linha e linhas de memória.

Onde há corpo há movimento, onde há movimento há criação de linhas.
O corpo projeta-se no espaço material de forma não-linear, isso ampliado em vários sentidos de entendimento, podendo recriar-se, momentaneamente, de acordo com o tipo de matéria que este corpo possui. Do corpo dos animais, ainda não incluídos os corpos humanos, estabelecemos uma relação corpo/movimento/linha, bem mais presentificada e fácil de ser identificada, de tal modo que a olho nu podemos perceber estes estados linha (algo como um tipo de materialidade da linha, subjetiva, inconsciente, psicológica), na visualidade da matéria. Tomo por exemplo a criação das linhas das formigas, que em movimentação constante, categórica e instintiva, orienta-se de um ponto x a um y, quase sempre à sua casa. De outra forma, podem perceber movimentos retos pontuais e circulares quando de alguma forma essa linha criada é interrompida, dessa ponto de vista as linhas tornam-se mais subjetivas ao olhar do espectador. Vale destacar aqui o voo das andorinhas, que estabelecem movimentações circulares uniformes de acordo com a circulação dos ventos, provocando uma materialidade para este através das linhas de memória, estas linhas são formadas pela permanência da imagem e memória, estabelecendo relações pisicopictóricas na visualidade.
Podemos pensar sobre estados de negociação entre a visualidade criada a partir da linha desenhada e da imagem projetada dessa mesma linha, ou outrem. Esta negociação pode ser provocada pela qualidade de acessar memórias ou por vivencias a partir da visualidade comum ou extra-comum (aprofundada na pesquisa e na percepção sensível), desse modo o dialogo estabelecido consigo, direciona o olhar a uma espectro projeção das imagens que antecedem a posterior, e assim sucessivamente. Posso destacar aqui, a artista da vídeo arte Nagi Noda que propõe uma sequencia reprodutiva da ação a partir da permanência visual do corpo no vídeo, sobrepondo imagens sobre imagens entre pequenos intervalos. Tal exercício já realizado na origem do cinema. Negociamos então, a forma de perceber o que não está exposto, isto é, damos origem a partir do momento em que há uma troca relacional entre o que é o que vemos e o que pode vir a ser. Os artistas da dança contemporânea brasileira Telma Bonavita e Christian Duarte, propuseram uma relação corpográfica, em dança, a este trabalho da Nagi Noda, intensificando neste sentido a ideia das linhas de memória. Este trabalho intitulado Nagi Infinitum cria-se a partir da projeção do movimento do outro e da permanência da ação física no espaço em direção ao posterior, por até cinco corpos à frente. O movimento da linha neste caso, da visualidade às linhas de memória que no caso das andorinhas, por exemplo, não permanecem no espaço. Ou seja, é a memoria presente do movimento e da linha do corpo no espaço.
Dentro da cultura oriental, posso estabelecer uma reação entre duas atividades que coorientam-se entre corpo e linha ou, com a desconstrução desta. O primeiro é o Butoh que estabelece uma relação da coluna com a possibilidade de uma profanação deste corpo, não no sentido religioso, mas no sentido humano e desumano. Esta linha/coluna é precipitada à quebra, a sinuosidade e a vetoridade que rompe o corpo da sua cotidianidade e de sua presentificação racional. A dança dos mortos, a dança das partes negras, sendo assim uma visualidade das linhas imaginarias do corpo que nos revelam o que o corpo nos diz. O segundo eixo oriental que podemos relacionar diretamente a este pensamento está presente nas artes marciais. Por exemplo, dentro da criação dos Kata’s que é ensinado a partir da imagem que o corpo desenha no espaço e não somente a que permanece no chão. O Chi Kung, primeira arte marcial chinesa que originou todas as outras artes marciais orientais, nos provoca sobre estes estados físicos/espirituais. Está arte marcial nos fala como fundamento, sobre uma linha que liga o corpo humano/terra (pés, coluna, cabeça), a estados espirituais/cosmo/céu. A linha neste caso é vista ou sentida por uma espiritualidade sensível.
Relacionando a linha com a dança a partir uma de minhas criações, posso citar a experiência pictórica do Mande in, que propõe-se não somente a realizar uma composição coreográfica livre efêmera, mas também a criar uma visualidade real ao movimento. Em um dos momentos-ação deste trabalho, estabeleço juntamente com Thiago soares, performer coautor, a captura do movimento a partir do desenho de contorno por linhas, o mesmo realizado por peritos criminais em casos de morte no trânsito, estes desenhos vão sendo sobrepostos um ao outro. O desenho movimenta-se como dança e linhas de memórias vão sendo estabelecidas entre a negociação dos corpos dos performers e a imagem criada do/entre o público-performer.
A observação sensível para a vida nos projeta relações adversas à experiência do existir e do existido – revela-nos a possibilidade de um agir conceitual sobre a materialidade do simbolismo e da desmaterialização de leis estabelecidas pelo comum. Benjamin que diz que somos forçados a reconhecer que a concepção das grandes obras se modificou simultaneamente com o aperfeiçoamento das técnicas de reprodução. Mas de que forma podemos acessar este tipo de concepção ou de entendimento, já que as formas de apreciação e de reconhecimento perpassam outras singularidades que não se enquadram em modos de fruição específicos, tais como reações, sensações e historicidade do publico? Ou como partilhar essa experiência sensível? De toda forma, provoco aqui a relação imagética, sensorial e perceptiva sobre a vida e a arte em experiência simbólico-material, ou de outra maneira, instigar o pensamento poético para a existência humana.

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Referências
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005.
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. Vol. 1. Magia e Técnica, arte e politica. São Paulo: Brasiliense, 1994.
GOMES, Fernanda de Oliveira. O espectador-performer: a exposição de si no cenário das tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2014.
MANDE IN. Disponível em http://www.layobulhao.wix.com/mandein acessado em 28 de Janeiro de 2015.
Nagi Noda. Disponível em:
http://www.magedesign.com/pleasure/wp-content/uploads//2011/08/naginodasfilmstill
acessado em 29 de janeiro de 2015
Chi Kung. Disponível em:
http://www.developyourenergy.net/wp-content/uploads/2010/12/chi-kung-balloon.png
acessado em 29 de janeiro de 2015